Livrando a mulher de Jó do banco de réus



"Então sua mulher [de Jó] lhe disse: Ainda reténs a tua sinceridade? Amaldiçoa a Deus, e morre". (Jó 2.9 - Almeida, Revista e Corrigida)

Sem dúvida alguma, uma das mulheres mais detestadas de toda a Bíblia (senão a mais detestada) é a mulher de Jó. Embora a Bíblia não mencione o seu nome, a tradição conferiu-lhe o nome de Sitis.[1] Todo este sentimento de aversão a ela se deve ao texto citado acima. Apenas para termos uma pequena ideia sobre como a mulher de Jó foi compreendida pela cristandade, cito Francis Andersen, que faz um curioso comentário a seu respeito:

"Os cristãos de modo geral têm sido mais severos com ela [a mulher de Jó] do que os judeus e os muçulmanos. Ela era a aliada de Satanás. Agostinho chamou-a de diaboli adjutrix; Crisóstomo: 'o melhor flagelo de Satanás'; Calvino: organum Satani. Segundo este ponto de vista, ela tentou seu marido a auto-condenar-se ao conclamá-lo a fazer exatamente aquilo que Satanás predissera que faria".[2]

Já o teólogo Russell Norman Champlin, citando Samuel Terrien, menciona o ponto de vista favorável deste autor francês para com a atitude da esposa de Jó. Eis as suas palavras:

"Samuel Terrien (...) interpreta que a esposa de Jó só estava tentando vê-lo morto e livre de sofrimentos, supondo que uma maldição tivesse o poder de eliminar os sofrimentos dele. Em outras palavras, ela era uma antiga advogada da eutanásia. (...) Ela raciocinava que, se Jó amaldiçoasse a Deus, uma retaliação divina mataria o homem, pondo fim aos seus sofrimentos. (...) Terrien chegou a supor que o ato da mulher de Jó tenha sido inspirado pelo amor, por mais ignorante que tenha parecido ser".[3]

Esses comentários, longe de esclarecerem qual era a verdadeira intenção da esposa de Jó ao dizer aquelas palavras ao seu marido, acabam promovendo mais a polêmica do que uma possível solução em torno do assunto. Mas, afinal, que sentimentos levaram a esposa de Jó a proferir palavras tão duras ao seu marido num dos momentos mais difíceis da sua vida (pois ele já havia perdido seus filhos e seus animais, bem como, na presente situação do texto, até mesmo a própria saúde)? Ora, acredito que pesquisar o que o original diz nesse texto pode nos ajudar a tentar solucionar essa questão. Eis o que diz o texto de forma literal:

"E disse a esposa dele a ele: [você] ainda se mantém firme em sua integridade? Abençoe a Deus e morra".[4]


Talvez, ao ler este verso, você tenha se perguntado: "Espera aí, você traduziu errado! A tradução correta não é: 'abençoe a Deus e morra'?". Bem, quando lemos o original, a palavra que aparece no verso 9 é o verbo hebraico barak, cujos significados básicos são: "ajoelhar, abençoar, louvar, saudar e amaldiçoar (usado de forma eufemística)".[5] Perceba que quatro dos cinco significados básicos deste termo estão associados a aspectos positivos ("ajoelhar, abençoar, louvar, saudar"), enquanto que apenas um significado, e ainda assim usado de maneira eufemística, está relacionado a algo negativo ("amaldiçoar").

Se pesquisarmos a Septuaginta (a tradução grega do Antigo Testamento Hebraico, que é datada do III século a.C.) veremos que ela não nos ajuda a decifrar o dilema linguístico que há no hebraico, pois ela apresenta assim Jó 2.9 (de forma bem ampliada):

"Passado muito tempo disse-lhe sua mulher: 'até quando perseverarás dizendo, [1] vede, espero ansiosamente ainda por um pouco de tempo, aguardando a esperança da minha salvação', [2] mas eis que é apagada tua memória da terra, os filhos e filhas do meu ventre; dores de parto e aflição em vão - esgotei-me pelo labor! [3] tu mesmo em podridão de vermes permaneces, passas a noite ao ar livre; [4] e eu, tenho andado errante e pedinte de um lugar a outro, e de casa em casa; tenho esperado o sol - quando ele se porá, para que amenize os labores e aflições que agora me cercam? [5] mas diga uma palavra ao Senhor, e morra!".[6]

Mas então, como podemos entender Jó 2.9 à luz de seu contexto imediato? Ou melhor, como deveríamos interpretar (a partir da tradução que demos a Jó 2.9), por exemplo, Jó 2.10, quando Jó diz à sua esposa: "Como fala qualquer doida, assim falas tu; receberemos o bem de Deus, e não receberíamos o mal?". Bem, se a nossa tradução estiver correta em 2.9 e, portanto, "Sitis" abençoou Jó em vez de amaldiçoá-lo, logo, segue-se que no verso 10 Jó não condena a sua esposa por tê-lo instigado a "amaldiçoar" a Deus, mas sim chama a sua atenção por ela dar a entender com as suas palavras que não acreditava que ele sobreviveria àquela doença e a toda aquela situação (a perda dos animais, dos filhos etc). Neste sentido, então, Jó a adverte quanto ao fato de que eles ainda receberiam a bênção de Deus no futuro (ele diz: "receberemos o bem de Deus").

A favor de nosso ponto de vista podemos argumentar ainda que as palavras da esposa de Jó sugerem "um desejo sincero de ver Jó livre dos seus tormentos (pela morte)", uma vez que ela não parece ver "a possibilidade de recuperação da saúde [dele] e da restauração dos bens".[7] Essa hipótese parece ser bem razoável e também parece coadunar mais com a realidade, pois, quando passamos por momentos muito difíceis em nossas vidas (assim como Jó e a sua esposa passaram), é natural que um dos cônjuges, ou até mesmo os dois, façam um balanço negativo da realidade que estão enfrentando, chegando, inclusive, a desenhar um futuro sombrio pela frente. De qualquer forma, como deveríamos ver a esposa de Jó: como "bandida" ou como "mocinha"? Quem sabe, algum dia ainda saberemos a verdade...

Abraços,

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[1] BERGANT, Dianne & KARRIS, Robert J. (org). Comentário Bíblico. Vol.II. São Paulo, Edições Loyola, 1999, p.215.
[2] ANDERSEN, Francis I. Jó, Introdução e Comentário. São Paulo, Vida Nova/Mundo Cristão, 1989, pp.89,90.
[3] CHAMPLIN, R.N. O Antigo Testamento Interpretado: versículo por versículo. Vol.3. São Paulo, Hagnos, 2001, p.1871.
[4] Esta é a minha tradução pessoal do texto.
[5] HARRIS, R. Laird. (org). Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo, Vida Nova, 1998, p.220.
[6] O texto sem negrito aparece apenas na Septuaginta. Já os textos em negrito são aqueles que têm o seu correspondente em hebraico. Essa tradução em português da Septuaginta encontra-se em: http://doaldofb.sites.uol.com.br/septuaginta.html.
[7] ANDERSEN, Francis I. Op.Cit., p.90.

7 comentários:

Eliseu Antonio Gomes disse...

Wilma.

As sugestões da esposa de Jó são, talvez, a pior proposta que uma pessoa pode fazer a outra: apostatar da fé no Criador e suicidar-se.

Ela e a esposa de Ló parece que tinha uma característica em comum. eram extremamente materialistas.

Abraço.

victor disse...

Muito bom o artigo !! Eu acrescentaria mais um argumento, com a mesma esposa o Senhor enviou a benção dos novos filhos e a recuperação financeira !!

Wilma Rejane disse...

A paz de Cristo, Eliseu!

Gostei do artigo por trazer uma visão distinta da perpetuada pelo conhecimento popular. A esposa de Jó é sempre lembrada como louca e sem dúvida sua falta de fé a levou a proferir palavras vãs, inapropriadas.

Contudo, pouco se fala do silêncio dela ao longo do livro, dos capítulos que descrevem o sofrimento de seu esposo. Teria ela se arrependido da sua loucura? Estaria ela em oração pela restituição de Deus? Não sabemos, mas a julgar pelo final do livro de Jó, quando ela reaparece para reconstruir a vida com seu esposo, conclue-se que ela permaneceu fiel a Deus e a seu esposo.

A esposa de Jó foi perdoada, seu último estado foi mais íntegro e digno ao o primeiro, contudo, pouco se fala sobre isso.

Se Jó perdoou sua esposa, se ela demonstrou amar a Deus mantendo silêncio e devoção no pior momento de sua vida, quem sou eu para condená-la?



Wilma Rejane disse...


Obrigada, Victor e Eliseu!

Teonia Soares disse...

Bom dia Wilma Rejane, além de ser um texto rico, muito rico, amei sua resposta, muitos condenam a "decisão" da mulher de Jó, porque muitos só gostam de olhar as falhas dos outros, principalmente, quando não estão passando o que os outros passam, quase ninguém parou para ver com olhos mais carinhosos a atitude dessa mulher, que deve ter sofrido horrores também, e errou, como qualquer um de nós, porque somos falhos, mas pelo que li, e concordo plenamente, DEUS a perdoou, tanto, que ela foi muito feliz com Jó. Eu percebo Wilma, que o ser humano gosta de apontar os erros do outro, pisar, massacrar, ver que o outro está sofrendo, e , como os amigos de Jó, jogar todo o veneno, que não vem de DEUS, é claro em cima daquele sofredor. Há 12 anos luto com problema de saúde, na coluna, e hoje, aos 57 anos, desde novembro que não ando, nesse tempo todo, sempre buscando ao Senhor, lhe confesso, já escutei de tudo dos que se dizem evangélicos, desde "você não está curada porque sua fé é pequena" a "vá orar mais", "vá fazer campanha", peça a DEUS para Ele revelar, quer dizer ir numa Igreja em busca de "revelações", eu, como humana que sou, falha, pecadora, já não tenho paciência de ouvir o que as pessoas sem escrúpulos e sem a mínima piedade, falarem, olham para mim e só falta dizer que isso é pecado, porque já falaram até que é demônio, quer dizer, NINGUÉM , pode adoecer porque isso é demônio, pois Ele já levou nossas dores na Cruz... Me poupe, falta de entendimento total com quem está necessitado de amor, carinho, compreensão, está ali, doente, fragilizado e aparece um monte "irmãozinhos do bem", os santarrões querendo arrotar santidade, e eu sei que DEUS vê tudo tão diferente... Se nosso JESUS aparecesse no meio do povo, hoje, Ele seria apedrejado, a começar, que Ele estaria com os doentes, os necessitados. Desculpe escrever assim, mas é que a paciência com certos irmão já se esgotou... sei que qualquer Cristão está sujeito a doenças, somos seres humanos iguais, a diferença é quem se entrega a DEUS, realmente, e quem se entrega realmente, de verdade, tem um coração mais puro, doce, sereno, diante do sofrimento do outro, usa de misericórdia, assim como DEUS é misericordioso. DEUS abençoe sua vida, sempre dou uma passada aqui, gosto muito do seu blog. Abraços. A Paz! Em Cristo JESUS: Teônia Soares

Teonia Soares disse...

Ah, sua resposta foi muito inteligente, dá para ver a sabedoria escrita no seu coração.
Abraço.
Irmã Teônia Soares

Wilma Rejane disse...



Olá irmã Teônia, como estou lendo seu comentário à noite: Boa noite!

Irmã, vejo que o livro de Jó, além de evidenciar o sofrimento humano e suas causas, evidencia também um outro aspecto não menos importante: o julgamento humano, na maioria das vezes falho e injusto. Elifaz, Bildade e Zofar, não agiram segundo o amor e misericórdia Divinos (Jó 42:7). O amor e a misericórdia ainda são atitudes raras hoje em dia, infelizmente.

A irmã disse que "Deus vê tudo tão diferente...". Que bom, não é mesmo? Deus é longânime, maravilhosamente bondoso e cheio de compaixão! Ele não tem o mal por bem e vice versa, pois também é justo, mas Sua justiça não está ao alcance da justiça dos homens porque Ele vê todo o contexto humano, do alto, de Sua magnífica glória já os homens têm um olhar terreno, limitado, sem capacidade de conhecer o profundo e o escondido, os tempos e as estações designadas.

Me solidarizo com a irmã ao tempo em que faço votos de plena recuperação da saúde.

Abraço, amada irmã. Muito obrigada por sua rica contribuição e companhia.