A Batalha de Oração do Rei Davi no Salmo 3

 

Morte de Absalão - Quadro de Corrado Giaquinto

João Cruzué

O Salmo 3 surge como testemunho vigoroso de fé pronunciado no ápice de crise existencial e política. Davi, fugindo de   (אַבְשָׁל - Avshalom), seu próprio filho, experimenta a ruptura de tudo aquilo que sustentava sua identidade real. A aflição é profunda e : militar, familiar e espiritual. Seus numerosos adversários agora (רַבִּים – rabbim) o cercam e declaram com crueldade teológica: “אֵין יְשׁוּעָה לוֹ בֵּאלֹהִים – Ein yeshuah lo b’Elohim”:  “Não há salvação para ele em Deus.” O salmo inicia-se como lamento autêntico, expondo a alma ferida diante do Altíssimo.

No ponto de inflexão, Davi recusa ser interpretado pela aparência do desastre e redireciona sua visão à realidade superior do pacto. A declaração central rompe a escuridão: “וְאַתָּה יְהוָה מָגֵן בַּעֲדִי – Ve’attah Adonai magén ba’adí”:  “Porém Tu, Senhor, és um escudo ao redor de mim.” O termo מָגֵן – magén indica escudo arredondado, proteção integral de 360°. Ele afirma ainda: “כְּבוֹדִי וּמֵרִים רֹאשִׁי – minha glória e o que exalta a minha cabeça”. Assim, a honra (כָּבוֹד – kavôd) e a dignidade restauradas não provêm da política, mas da presença do Deus de Israel.

Segue então o glorioso paradoxo da confiança: enquanto cercado, Davi declara: “אֲנִי שָׁכַבְתִּי וָאִישָׁנָה – Ani shachavti va’ishanah”: “Eu me deitei e dormi.” O repouso não é fisiológico, mas teológico: שָׁעַן – sha’an, “sustentar”, implica apoio estrutural. Ele desperta e reconhece: “כִּי יְהוָה יִסְמְכֵנִי – Ki Adonai yismekhêni”, “Pois o Senhor me sustenta.” O medo transforma-se em coragem absoluta: mesmo diante de “רִבְבוֹת – rivvavot” (dezenas de milhares) de adversários, ele declara não temer, pois sua segurança não está nos exércitos, mas em יְהוָה – YHWH.


O clamor final explode em linguagem litúrgica de guerra: “קוּמָה יְהוָה – Kumah Adonai”, “Levanta-Te, Senhor!”. O pedido para “ferir seus inimigos na face” e “quebrar os dentes dos ímpios” (“שִׁבַּרְתָּ שִׁנֵּי רְשָׁעִים – shibbarta shinei resha’im”) utiliza metáfora jurídica, retirando dos adversários o poder destrutivo. Aqui Deus é o Guerreiro Santo (אֵל גִּבּוֹר – El Gibbôr), que intervém e restabelece justiça.

O clímax teológico encerra o salmo com uma das frases mais densas das Escrituras: “לַיהוָה הַיְשׁוּעָה – La’Adonai haYeshuah”, “Do Senhor vem a salvação.” O termo יְשׁוּעָה – yeshuah aponta para libertação divina completa e soberana. A bênção final se expande para além do indivíduo: “עַל עַמֶּךָ בִּרְכָתֶךָ – Al ammekha birchatecha”, “Sobre o Teu povo seja a Tua bênção.” 

Assim, o Salmo 3 revela que crises pessoais transformadas em fé irradiam graça coletiva. Nenhuma noite é longa demais quando Deus é o מָגֵן – escudo, nenhum inimigo é grande demais quando יְהוָה é a fonte da יְשׁוּעָה, e nenhum sofrimento é inútil quando conduz à bênção sobre o povo de Deus.

SP- 23/11/2025.

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